RECEITAS DE VIDA----VITOR BROTAS
Vítor Brotas é médico no hospital dos Capuchos, não tem telemóvel mas pode
ser facilmente encontrado ao longo de todo o dia em medicina 3. Quando chego à
hora combinada, já depois de terminar o seu turno desse dia, preparo o gravador
para a conversa sobre o seu trabalho clínico mas também sobre as esculturas que
ele vai fazendo em troncos de árvores abatidas pela Câmara Municipal de Lisboa.
Pede-me que espere mais alguns minutos enquanto vai ver o que se passa com um
doente que grita ao fundo de um dos corredores sombrios do hospital. Pergunto-lhe
se ao fim do dia de intenso trabalho, um gemido ao fundo do corredor ainda é
uma sirene para os seus ouvidos, mas ele parece não dar atenção a esta pergunta
a não ser porque ela nos reenvia para o desespero da dor e como se
deliberadamente queimasse etapas, ele começa a falar de uma quase obsessiva
apetência pelo exercício físico, partilhando o episódio dos tempos em que
praticando o BTT se convenceu que era, como ele mesmo diz, um grande atleta,
preparando-se para entrar em prova com uma atitude muito competitiva.
--a primeira prova em que eu entrei assim, muito a sério…mais a sério, foi
as 24h do BTT que se realizaram…as primeiras em Portugal… em Vila de Rei. Nesse
ano fiquei logo em segundo lugar e eu pensava que era o maior. E de maneira que
alimentei uma coisa que é irritante porque, é querer ganhar alguma coisa, que é
uma estupidez completa, porque quando a pessoa quer ganhar alguma coisa perde a
sua alma. O que é isto quer dizer?, É porque depois envereda por um tipo de
atitude, um tipo de maneira, um tipo de
comportamento, um tipo que é obsessivo, que é estúpido, porque a família fica
para trás, depois quer-se treinar isto quer-se treinar aquilo, depois dedica-se
também à profissão e tal… e portanto a minha família sofreu muito com isto.
Depois fiz uma segunda prova, a coisa não correu totalmente bem e na terceira
prova eu queria ganhar aquilo, que é a pior parvoíce que pode acontecer. Então,
nessa prova eu estampei-me, tive um acidente muito violento, e caí, imediatamente
apercebi-me que era uma coisa grave, comecei a ver a barriga a latejar e
aumentar de volume, fiquei com uma ruptura muito grande, abdominal e comecei a
desmaiar na altura e pensei de facto, que ia morrer e pensei assim, (estava no
meio do mato, no meio daquela coisa toda, no meio dumas pedras) assim pensei:
bom isto é o último bocado,( porque como sou médico apercebi-me da gravidade da
situação e pensava que estava com uma hemorragia interna), pensei: bom isto são os teus últimos momentos mas
repara bem que tiveste uma vida tão boa até agora com tantas coisas! Eu vivi de
facto uma vida tão feliz até hoje! É uma
coisa…Parece que as passadeiras se estendem à frente e é só passar por elas com
prazer, com gosto, com tudo de bom que esta vida me tem dado e eu disse: (na
altura tinha, não sei se quantos anos, 44 ou 45 ou 46 já não me lembro bem) e
pensei, esta também é a idade para morrer, não faz mal, é só terminar e é tudo
o que tu tens, o teu corpo e tudo isso vai ser oferecido, também as moléculas,
tudo vai partilhar. É uma partilha que tu tens é uma coisa boa, viveste uma
vida muito boa. E de facto é uma coisa estranha que as pessoas dizem que
próximos destes momentos muito aflitivos passa-lhes assim um filme da vida para
trás; para mim foi o recordar e reconhecer que tive uma vida muito boa até
hoje. Eu sinto quando venho para o hospital, quando venho para os sítios,
quando venho trabalhar e tudo isso, eu sinto-me sempre em férias. Conheço
pessoas novas todos os dias, conheço histórias novas todos os dias, conheço
pessoas que me oferecem de mão beijada as suas histórias, às vezes no mais
intimo, isso para mim é um prazer imenso. Depois o outro prazer é o poder
ajudar pessoas, poder estar com elas, poder-me pôr ao seu lado é outro prazer
imenso, de facto esta vida tem-me proporcionado muito isso.
--E estando rodeado de sofrimento. Para Vítor Brotas esse é um dos dilemas
mais perturbadores desta profissão.
--Às vezes, eu sinto-me um pouco solitário nesta questão do sofrimento,
porque ouço as coisas, convivo com as coisas, muitas pessoas… ajudo muitas
pessoas na altura da sua morte, ajudo muitas pessoas na altura dum sofrimento
intenso e partilho isso comigo próprio. Porquê contar a outros? Porquê ir para
casa contar à minha mulher? Porquê ir contar a outros colegas? Porquê partilhar
isso? Portanto isso fica para mim. Isso dá-me algum sofrimento pessoal mas
também eu sei que alguém tem de fazer isto. E para mim é animador fazer isto.
Mas de facto, isso que me diz o sofrimento é uma coisa que me impressiona
muito, o sofrimento de outras pessoas, o meu o de todos, é uma coisa que me
impressiona muito. Mas é uma coisa que eu guardo para mim e por vezes eu
preciso de facto de pequenas fugas, pequenas exteriorizações, que não sejam só
medicina, e é por isso que eu às vezes me dedico a outras coisas que não sejam
só medicina.
--E isso explica a aposta na BTT e no exercício físico. Vítor Brotas apenas
abandonou a atitude competitiva, não o gosto do exercício físico e da bicicleta,
mas riscou do mapa o lugar onde ia perdendo a vida.
--Abandonei a BTT. Não fui mais ao lugar e portanto monto na bicicleta para
dar um passeiozinho com a minha mulher e já é um pau.
--Mas Vítor Brotas não desaconselha a BTT… antes pelo contrário?
--Eu não desaconselho ninguém a fazer BTT, até porque é muito interessante
e há outra coisa muito engraçada; quer dizer, na altura quando eu estava muito
treinado tinha a impressão que não conseguia cansar-me e então podia pegar na
bicicleta e ia directo, por exemplo, sei lá de Coruche a… sei lá a Mora, ou
outra coisa qualquer, sem ir por estradas nem nada, que ia à vontade não tinha
problemas nenhuns, ou a outro lado qualquer; portanto aquilo é muito prazeiroso.
O problema está em quando se arrisca, por exemplo, para tentar ganhar alguma
coisa, para chegar à frente de outros ou tudo isso. Esse tipo de atitude, esse
tipo de comportamento é arriscado e eu acho que deve ser reservado para
especialistas, para pessoas que façam daquilo e que façam aquilo com qualidade.
Não é como eu que montava na bicicleta e força nas pernas e pé a andar. Não
tinha aquela habilidade intrínseca que muitos dos miúdos têm e que já nasceram a
cavalo na bicicleta.
--Para o médico que gosta do exercício físico mas rejeita a competição
obsessiva, subsiste o prazer de longos passeios de bicicleta pelo campo, vendo
aquilo que a pressa das auto-estradas nos não permite.
--Quando vamos de bicicleta os animais…selvagens, aqueles animaizitos que
nós vemos, não têm tanto a ideia que vem um homem, porque não há aquele bater
dos pés a caminhar e tal…então nós aproximamo-nos e havia…pois a fugir, lebres,
não sei quantos e lá na minha zona há quem crie faisões para depois ser
abatidos em caçados e até faisões às vezes que soltam e perdizes e isto e
aquilo pois… é até muito interessante todos estes aspectos. Mas tudo na vida
tem fases e eu de facto tive o gosto de atravessar essa fase e tive o gosto de
atravessar muitas outras fases na vida. E todas elas retenho, todas elas
aprecio e todas elas tenho um gosto enorme de recordar. Há bocado, por exemplo,
perguntou-me: e eu retenho estas pequenas histórias? Eu tenho grande
dificuldade com nomes, por exemplo, lembrar-me imediatamente o nome das pessoas
para mim é difícil, mas como em medicina nós treinamos sempre pequenas
histórias, uma pessoa para mim não é um nome só. Lembro-me, por exemplo, do
nome completo duma pessoa pela musicalidade que esse nome contém, mas não me
lembro do primeiro nome daquela pessoa imediatamente. Mas se aquela pessoa me
disser o primeiro nome dela, digo-lhe o nome completo pela musicalidade. Essa
música que está no ouvido é muito importante, porque nós em medicina
habituamo-nos a ouvir e a reter pequenas histórias. A pessoa que nos conta que
tem esta dor assim e assim, que surgiu naquele momento e que tem não sei
quantos… mas que também tem uma cão não sei quantos…tudo aquilo é a pessoa. Mas
não é só aquilo que é a pessoa, quer dizer, o médico tem de tomar atenção
àquilo que a pessoa diz, não por palavras mas pelos gestos, pelo olhar, o que
não está expresso em palavras.
--Mas Vítor Brotas retém dos seus doentes mais do que palavras ou gestos ou
olhares.
--Consigo reparar no perfume que a pessoa traz, se é novo se não é e digo:
ah você hoje traz um perfume novo,- ah como é que você adivinhou? Ah da outra
vez era outro perfume. Eu não sei qual era o perfume mas sei que era diferente,
porque aquilo fica retido em mim. Por exemplo a pessoa a andar; os passos
daquela pessoa, eu consigo perceber quem é a pessoa que está a chegar só pelos
passos. Para mim estes sinais todos do conjunto de alguém são muito
importantes. Há bocado quando eu lhe perguntei por duas vezes qual era o seu
nome eu não sei se ficou a pensar : este gajo é variado do sistema, mas não. De
facto tenho alguma dificuldade com nomes inicialmente, mas porque as pessoas
para mim são muito mais do que isso; são cheiros, são afectos, são uma
quantidade de coisas. Isso para mim retém-se. Aprendi isto com a medicina mas
já aprendi isto há muito tempo na minha vida, porque eu sou de uma aldeia e nas
aldeias aprende-se muito mais coisas do que nas cidades.
--A aldeia onde nasceu chama-se Erra. Ora, Erra é como o nome que o
compelisse a acertar sempre.
--Não. Nós temos é muito orgulho da nossa terra sempre. Parece que a nossa
terra sempre é a melhor de todas mas aquela terra muito especial quando eu vivi
lá era miúdo e ainda fui miúdo de pés descalços, andava descalço durante o
verão, durante o inverno tínhamos botins de borracha (os que os tinham) para
andar lá em cima das poças de gelo e daquelas coisas todas, mas o que é
engraçado naquela terra, é que aquela terra na altura em que eu lá vivi parecia
que tinha parado no tempo. As casas eram de adobo, era de terra batida o chão,
depois nós íamos quando as velhotas lá aguavam a casa durante o verão para não
levantar pó, porque aquilo levanta pó, nós miúdos íamos lá descalços e fazíamos
desenho no chão com os pés, elas ficavam todas zangadas, depois escorregávamos
nos poiais delas, depois…era muito interessante, vivi uma juventude lá muito
engraçada.
--Ia brincar ao Sorraia ou era longe?
--O Sorraia sim. Embora o Sorraia fosse um problema porque eu nunca soube
nadar nem nunca aprendi a nadar e nado muito mal. Portanto tive sempre uma
certa mala pata para a água, mas íamos aos banhos ao Sorraia, íamos aos banhos
aos Pegos, íamos roubar a fruta, íamos fazer aquelas coisas todas que os miúdos
fazem. Éramos uns miúdos até muito traquinas, muito, muito, muito, é quase raro
o dia, que eu me lembre, que não tenha levado umas cacetadas do pai, ou de
outra pessoa qualquer, porque os miúdos eram de facto terríveis.
--Ora foi justamente nesses dias duma felicidade errante, numa aldeia perto
do Coruche que o ainda muito jovem Vítor Brotas encontrou os plinios decisivos
para as suas escolhas profissionais, mais adiante.
--eu era miúdo e o meu pai muito novo ainda (que é uma coisa rara) ficou
com uma doença, que é a doença de Parkinson. Na altura não havia tratamentos,
aliás, o primeiro medicamento praticamente que houve disponível na altura era o
ARTANE que era o TRIEXIFENIDIL, mas aquilo não fazia grande coisa. À volta
disto houve histórias muito interessantes. O meu pai foi operado por um médico
(eu não vou dizer o nome), à doença de Parkinson que foi uma TALAMOTOMIA
SUBCORTICAL que era uma coisa que se fazia. Na altura, esse médico que
trabalhava nos Capuchos, operou-o na Privada. Mas nós éramos uma família muito
pobre e de facto eu fiquei muito impressionado, porque eu tinha 6 anos e quando
estávamos à espera do meu pai (o meu pai veio no táxi do sr. João de Cavaco,
que era lá o… praticamente um dos poucos táxis que havia em Coruche). E quando
veio a minha mãe, (que nós estávamos sentados ali num divãzito que tínhamos lá
na casa), a minha mãe disse assim: agora vocês (éramos 3 irmãos, 1 tinha
morrido), vocês vão buscar o vosso mealheiro e dão o vosso dinheiro ao pai,
porque a operação foi muito cara. Eu lembro-me que na altura a operação tinha
sido 16 contos. Eu fiquei extraordinariamente impressionado como é que alguém,
de facto, pobre como os meus pais eram, ainda tinha tido de ir agarrar em 16
contos para ir pagar ao médico que tinha operado em regime privado,
enfim…parece que tinha de ser…não importa e fiquei muito impressionado. Aquilo
marcou-me; quando oferecemos o dinheiro ao meu pai, lembro-me do meu pai chorar
pela primeira vez, eu nunca tinha visto isso, isso ficou-me marcado. Mas eu
estava uma vez de urgência e chega-me alguém às 5h da manhã, com alguém que se
tinha intoxicado de propósito, com um fármaco, com um barbitúrico. Quem era
essa pessoa? Tinha sido o médico que tinha operado o meu pai na altura. E esse
colega ficou um bocadinho ali assim e eu pensei: vejam bem como as coisas são…
e vinha o filho e vinha a mulher e eles não estavam de acordo; um queria que se
salvasse o pai e era facílimo, porque com os barbitúricos é muito fácil e o
outro não queria, porque o pai tinha achado que era a altura própria para
morrer e aquilo tudo ficou um bocadinho nas minhas mãos tudo isso e eu fiquei
ali com eles a falar e assim… a conversar um pouco e depois chegou-se a uma
conclusão do que se deveria fazer. Mas as histórias têm este desfecho e têm
esta coisa. Isso marcou-me.
--E isso aconteceu neste hospital dos Capuchos onde agora conversamos.
--Não queria contar esta história, mas isto é para dizer que isso marcou-me
e criou-me… (este pequeno pormenor), criou-me também um desejo: um dia gostava
também de vir a poder oferecer qualquer coisa a alguém, mas que fosse mais
gratuito um bocadinho, mais gratuito, um bocadinho…que as pessoas não tivessem
de fazer tanto esforço para que acontecesse um bem a alguém.
--Isso era ainda, era já, o pensamento de uma criança de uma aldeia, perto
de Coruche.
--Mas também é o pensamento de uma criança, por exemplo o meu pai começou a
vir às consultas aos Capuchos da doença de Parkinson. E foi muito engraçado,
porque ele fez aqui em Portugal, quando foi o lançamento da L’DOPA, que foi o
melhor fármaco que apareceu ainda. Ainda agora temos a fórmula LEVÓGIRA da L’DOPA,
porque na altura a L’DOPA era a mistura RACÉMICA, agora é a fórmula LEVÓGIRA.
Ainda agora a temos e é muito eficaz; na altura a L’DOPA foi trazida para
Portugal e foi feito um ensaio de fase dois que era um ensaio de toxicidade e
foi conduzido pelo professor António Damásio que está agora nos Estados Unidos
e pelo dr. Carlos Macedo aqui nos Capuchos. Meu pai entrou nesse estudo. E a
partir daí ficou a ser acompanhado aqui nos Capuchos. E eu vinha puto ainda de
calções e assim… buscar cá L’DOPA ao hospital e levar para a minha casa e tudo
isso. E é muito engraçado que o médico que depois ficou cá a acompanhar o meu
pai era um colega (que eu para já não vou dizer o nome também) que era um
colega, que eu na altura tinha 11, 12, 13 anos e vinha cá à consulta com o meu
pai e ficava impressionadíssimo. Um homem delicadíssimo, extraordinário,
convivia com os doentes com uma bondade, uma maneira de ser absolutamente
extraordinária que eu nunca tinha visto em ninguém, nunca. E quando o meu pai
vinha com outra pessoa, que não vinha comigo e com a minha mãe (ele vinha
sempre com a minha mãe) mas quando chegávamos a casa nós comíamos à trapessa
que é o sítio onde se matam os porcos, era a nossa mesa; estávamos lá a comer e
eu ouvia com uma admiração enorme as histórias que o meu pai contava daquele
doutor que o tinha visto: e o dr. Fulano de tal viu-me e disse-me…não sei que…e
eu ficava …daqui nos Capuchos. Esse foi o homem que me conduziu à medicina.
Porque foi aquele testemunho que o meu pai falava daquela bondade, daquela
maneira de ser, daquela forma de estar, da delicadeza com que tratava os seus
doentes e tudo isso, isso foi a minha tábua.
--Chegou a conhecer esse homem ou não?
--Com certeza, muito bem, eu depois quis estagiar com ele também e nunca
lho contei. Nunca lhe contei que ele tinha sido determinante para a minha vinda
para a medicina. Nunca lhe contei isso.
--Estagiou com ele?
--Estagiei com ele depois, de propósito. Nunca lhe contei. Ele era
neurologista. Era uma pessoa para mim extraordinária. Para toda a gente era um
homem com uma grande categoria.um grande neurologista mas sobretudo um homem
muito bom, uma grande bondade. E eu aprendi muito com ele, ia às consultas dele
também e tal e isto…aquilo. E uma vez caiu uma grande desgraça em casa dele. O
filho veio a falecer com uma doença (o filho ainda novo com 19 anos que nós também
acompanhámos aqui, nos Capuchos), veio a falecer com uma doença, pronto, com um
cancro. E ele depois também teve o cancro que o filho teve porque era uma doença
hereditária. E eu disse: eh pá, mas que raio… agora é que eu vou contar ao
colega o que é que aconteceu?. É porque
isto há um tempo na vida para contar as coisas, já devia ter contado. Agora que
está tudo em desgraça é como se fosse uma coisa assim, pós crise… ehh agora
vou-te contar isto para te animar, não…depois eu disse: eh pá. Oh colega fulano
de tal, eu vou ter de lhe contar isto; e contei-lhe tudo e o colega ficou muito
impressionado e eu também. Ficámos os dois abraçados e tal até porque eu tive
uma colostomia quando foi do meu acidente, 6 meses e ele também tem uma
colostomia. E ele abraçava-me na altura, de vez em quando e dizia-me: olha
aqui, já cá estão eles a abraçarem-se… na colostomia… que era para me dar
ânimo. E depois nós abraçámo-nos numa maneira mais íntima, mais pessoal, porque
a minha história de vida ele tinha-ma traçado. Eu estive com ele, convivi com
ele e aquela maneira de ser ajudou-me também a ter uma certa maneira de ser.
--Vítor Brotas não se cansa de falar desse homem por causa de quem, um dia ainda
rapaz, desejou ser médico.
--ele era um homem de uma bondade extrema um individuo fabuloso (espero que
ele me ouça) mas ele sabe isso, que eu sei que ele é um individuo fabuloso e
fez-me alimentar este querer vir a ser, porque eu era um miúdo tinha 12, 13
anos, 11anos, 12 anos aliás, a primeira vez que vim aqui ao hospital dos
Capuchos tinha 11 anos, andava eu no seminário (porque eu andei no seminário
para ser padre). E depois vim aqui ao hospital dos Capuchos com 11 anos, porque
lá no seminário viemos todos ver o jardim zoológico. E eu e o meu irmão
dissemos: eh pá, já que estamos aqui, vamos num táx,i naqueles táxis matateus
antigos e vamos ver o pai e de repente caímos ali, os dois, na sopa do pai:-
então mas vocês estão aqui? Ah viemos e viemos ambos ver o pai. Tinha 11 anos
quando vim aqui, quer dizer, aqui ao hospital dos Capuchos. Mas esse homem
marcou-me muito. Outro homem que me marcou foi o dr. Camilo, que era o médico
lá da aldeia e lá da vila, que era o dr. Camilo. E eu fiquei muito
impressionado com o dr. Camilo também, por muitas coisas: a primeira coisa foi
a minha mãe ter-me contado que o dr. Camilo da primeira vez que o meu pai vai à
consulta, o dr. Camilo com pequenos sinais disse que o meu pai tinha doença de
Parkinson mesmo naquela idade. Eu reconheço que agora, provavelmente nem 90%
dos médicos conseguiam fazer isso. E fiquei muito impressionado também com ele
por muito motivos, até, porque me tratou do braço partido, até porque era o
médico da aldeia e da vila e de Coruche e tudo isso, o dr. Camilo era um homem
também muito assinalável e que me deu estas coisas boas também.
--Reparo que já usou várias vezes a palavra bondade e sabendo entretanto
que andou no seminário, posso deduzir que essa palavra releva numa espécie de
vocação?
--porque é que nós vamos para as coisas nós não sabemos, há um conjunto de
contingências há isto, há aquilo e não é só o nosso querer que conta. São
várias coisas que às tantas nós nem conseguimos medir. Em relação ao seminário
é o seguinte: o seminário deu-me muitas coisas boas. Eu estive lá 4 anos,
gostei muito de lá estar, fui muito bem tratado, fico impressionado como é que
os padres, os prefeitos na altura que eram rapazinhos, 20 e tal 30 anos, como é
que eles eram de facto pessoas tao bem preparadas para nos ajudar. Só lá havia
um que era um bocadinho marreta, mas esse, pronto, era um pobre coitado. Agora os
outros de facto eram pessoas realmente muito boas, ensinaram-nos muito,
ajudaram-nos muito, foram grandes educadores, eram pessoas muito boas. Mas eu
perdi a fé neste sentido, aquela fé como católico como crente em Deus que
acompanha o Homem à medida que o Homem anda aqui. Não tenho essa crença. Tenho
mais crença noutro tipo de coisa, na…
--Na Humanidade…
--Na Humanidade…nessas coisas assim, tenho mais crenças nisso. Eu pertenço
a um tipo de médicos que são os generalistas. Eu quando você disse da outra vez
assim:- então mas você é especialista em quê? Eu é que disse: eu sou banalista.
Eu divido a actividade médica em especialistas e os não especialistas. Eu sou
um não especialista. As pessoas que dizem: ah você é um especialista. Ah não eu
não sou especialista. Acham que por dizermos que não somos especialistas
estamos a inferiorizarmo-nos, não é nada disso. O especialista não o é por ser
uma pessoa especial, nós não somos nada especiais e aquele especialista que é
especialista dos olhos não é nada especial nem é mais nem é menos que eu, nem é
mais isto nem aquilo…a especialidade é o seguinte: é dedicarmo-nos a
determinados pormenores. É dedicarmo-nos em profundidade a coisas estreitas.
Isso é um especialista, dedica-se em profundidade a coisas relativamente
estreitas. Um internista, um cirurgião geral, um pediatra, um...etc. e tudo por
aí fora. Um clínico geral e assim, dedica-se ao conhecimento ecléctico, é
aquele conhecimento mais geral, mais abrangente. E eu gosto de dizer que sou um
banalista, especialista em banalidades, sou um individuo que vai a todas, 90 e
tal por cento das coisas que se apresentam na medicina eu consigo abordá-las,
dar-lhe orientação e pois…depois há ali pequenos pormenores, que eu terei de
facto de ter o bom senso de pedir a ajuda de um dito especialista que é um
individuo que conhece as coisas em profundidade. Mas dentro desta área, dos
médicos gerais, a que eu pertenço o internista é um médico geral, é especialista
porque tirou uma especialidade, mas não deveria ser considerado especialista.
Dentro desta coisa que eu considero médicos gerais como eu sou, a bondade é uma
qualidade, não um defeito. É claro que também a eficácia a eficiência e ser um
bom técnico e temos de ser cada vez mais bons técnicos, temos de ter o material
à mão para podermos verificar se estamos a fazer correctamente tudo, temos de
ter boa informação médica temos de estar actualizados, temos de ter, enfim,
acesso imediato ao que está mais certo e ao que está cientificamente mais
provado e tudo isso. Mas aquela outra parte a bondade a disponibilidade, o
facto de não ter a palavra não na boca, o não..ah isso agora não, ah isso não.
Esse não, não pode ser. Nós temos de ter sempre a palavra sim, estar
disponíveis, ter uma coisa tramada que eu vou dizer (que a minha mulher vai me
dar cabo da marreta, da cabeça) mas eu digo: ter as pernas abertas! Isto
treina-se ao longo da vida.
--Por isso, aqueles gritos de há pouco ao fundo do corredor o obrigam a largar
tudo e a ir a correr ver o que se passa mesmo se já tirou a bata e só permanece
no hospital porque o convidámos aqui a uma entrevista.
--Nem todos os gritos me despertam a ir a correr mas, todos os gritos me
despertam aquilo que diz do sofrimento e da necessidade de ajudarmos, tudo
isso…até porque este hospital tem um tipo de doentes, aliás todos os hospitais,
agora estão…as pessoas que estão no hospital estão muito doentes. As pessoas
que estão moderadamente doentes estão em casa deles, nós conseguimos trata-los
no ambulatório . As pessoas que estão no hospital estão mesmo muito doentes. E
depois temos muitas pessoas que estão no hospital, infelizmente, para morrer
estão em circunstâncias da vida muito…circunstâncias muito difíceis. Têm dores,
têm falta de ar, têm…enfim…não têm força, não têm força para se bastar, para
comer, para se lavar sozinhos, tudo isso…e portanto nós estamos muito
habituados também a prestar apoio a estas pessoas na fase final da vida. E é
uma coisa que nos confrange também e que levamos sempre para casa e assim. Mas
relativamente a esta questão da actividade médica e do sofrimento humano e tudo
isso, aqui há uns anos antes de me nascer uma filha (eu tenho só uma filha) eu
pensava que havia um grupo de pessoas que eu nunca conseguiria dar tempo e dar
algo de mim, que era as pessoas ligadas ao mundo da toxicodependência e essas
pessoas assim, porque eu achava muito injusto que essas pessoas se dedicassem a
isso e enfim…eu via isso como uma oportunidade que eles tinham ou como uma
opção que eles tinham. Quando nasceu a minha filha eu fiquei com aquela
sensação que todos os pais têm: que os outros também são os nossos filhos, quer
dizer, quando nasce um filho a alguém dá a impressão que os outros também são
nossos filhos. E comecei a olhar para essa gente e a pensar: mas estes são os
filhos de alguém também, como é que tu não estás disponível para esta gente? E
então comecei a disponibilizar-me para junto dos centros dos toxicodependentes
dos casos dos centros dos toxicodependentes das comunidades terapêuticas, destas
organizações não governamentais, disso tudo. E comecei com a minha atitude para
com esta gente a ser um exemplo que tratava destas pessoas e as tratava com
estima e com respeito, como estas pessoas também devem ser tratadas e tudo isso
e então começou a soar que eu era o médico destas pessoas também. Foi muito
engraçado quando eu estive doente desta minha queda, tive uns meses (ainda
estive 1 mês internado) e tudo isso e todos estes meus colegas que só me
conheciam por telefone e que não me conhecem, todos eles sabiam que eu estava
doente, porque chegava-lhes aos ouvidos por esta gente que eles atendiam. E
mesmo na rua toda a gente sabia: olha o Brota está doente, teve um acidente não
sei quê… toda esta gente me conhecia e conheço estas pessoas na rua e conheço
toda esta gente. E tenho tido lições de vida muito muito interessantes com
estas pessoas. Primeiro: grande parte delas são pessoas muito boas, quando
recuperam ficam muito agradecidas à vida. E vale muito a pena investir o nosso
tempo com esta gente, vale muito a pena. Alguns dos meus colegas dizem: então
mas tu estás a tratar desse individuo assim tão bem e tudo isso mas então esse
individuo daqui a bocado vai sair daqui e vai fazer o mesmo, anda aí na rua,
droga-se cai no chão não sei quê… mas só pelo tempo que eles viveram
relativamente bem, com conforto, com carinho, com comida, com roupa lavada e
com alguém que os ouve e que os estima, já acho que é uma coisa muito boa.
--E quando lhe morre um doente como é?
--quando a pessoa está em sofrimento, já não há solução e nós pudemos
naqueles dias aliviar-lhe algum sofrimento e a pessoa acaba por morrer, para
mim eu sinto-me confortado e confortável , porque nós temos de morrer, temos é
de procurar morrer não em muito sofrimento e a própria família tem de fazer o
seu luto, portanto sinto-me na paz dos deuses. Se me morre alguém que não é
suposto morrer, eh pá isso é mau, porque primeiro a coisa que mais me acontece
frequentemente é pôr em questão se sou bom médico ou não, isso é uma coisa que
me aflige constantemente, quer dizer, eu vou para a minha casa a pensar: mas eu
presto para alguma coisa? No presto para nada? Sou bom médico, não sou bom
médico… faço a minha profissão com qualidade, não faço, o que é que eu ando aqui
a fazer? Já houve muitas vezes que eu pensei em desistir. Há colegas meus e
sobretudo alunos (que eu também dou umas aulas) e internos e assim e dizem:
estás maluco, tu és bom médico e tal. Mas já me passou pela minha cabeça muitas
vezes desistir e dizer: eh pá isto não está com nada…eu vou-me é embora, não
sei quê…depois, de facto se morre alguém que não devia morrer ou por exemplo se
tenho alguém entre mãos que ainda não sei o que é que tem, aquela dificuldade
do diagnóstico aquele horror do vazio que todos os médicos têm é uma angústia
muito grande.
--E quando lhe acontece uma angústia dessas apetece-lhe refugiar-se em
Coruche e entregar-se à escultura em troncos de árvores? Costuma enfrentar a
angústia com a goiva?
--Com a goiva, com a motosserra, com as lixadoras, com as polidoras, com
tudo isso. Mas não é essa a questão. Eu não vou às árvores com raiva. Isto das
árvores foi interessante, porque quando eu caí lá da tal bicicleta a minha
mulher quis-me conduzir a minha energia alternativa para outra coisa. Então
pagou-me um curso de talha em madeira na Fundação Ricardo Espirito Santo Silva
e eu aprendi com o mestre Manuel Abrantes, que era um homem excepcional. Então
ensinou-me aqueles rudimentos, aquelas coisas para fazer talha. Então comecei
por talhar, fazer aquelas flores, a folha de acanto, aquelas coisadas todas, a
poncha não sei quantos…e depois a páginas tantas achei curioso alguns aspectos
da madeira, porque como sabe madeira tem um radical latino muito interessante,
porque é madeira-mater, matéria mãe. Isto vem tudo da mesma coisa e na cultura
chinesa, por exemplo, também é um dos elementos primordiais como por exemplo,
nós temos a terra, ar, fogo, água. E eles têm a madeira, também é um elemento
primordial lá na cultura chinesa. eu achei muito interessante isto da madeira
porque a madeira acompanha-nos desde sempre. Acompanha a Humanidade em muitas
fases, além do mais também há muitas árvores que nos acompanham na nossa
própria vida, quer dizer, a árvore dura mais do que nós e vê-nos crescer e tal
…e depois morrer e tudo isso e tal…e eu achei muito engraçado porque, por
exemplo as primeiras árvores que eu trabalhei foi assim; aqui no hospital dos
Capuchos havia 8 Sóphoras Japónicas que eram umas árvores que estavam aqui
assim no hospital (por motivos… não vale a pena porque é que são plantadas
Sóforas Japónicas em Lisboa não vale a pena explicar isso, isso ia dar muito
tempo também),mas a Sóphora foi trazida do oriente para cá, da China para cá
por um rei francês (não vale a pena também estar a explicar isso e porque
motivos foram), mas ali no final do século 18 e depois no final sobretudo do século
19, foi cultivada em muitas cidades como árvore ornamental por vários motivos.
Aqui nos Capuchos elas estavam cá e para fazer o pavilhão do tratamento do
cancro no pavilhão de oncologia, o pavilhão do hospital de oncologia,
arrancara-se, cortaram-se 6 Sóphoras e eu estive a ler um bocadinho sobre as
Sóphoras e achei muito curioso que dentro das árvores, é a árvore mais
importante na medicina chinesa. Dentro das árvores, porque há muitas plantas da
cultura da medicina chinesa, mas dentro das árvores é a árvore mais importante.
E eu achei curioso também que ela é usada para muitas coisas na China: como
diurético, como isto como aquilo…e tem um alcalóide, portanto (uma substância
química) um alcalóide que se extrai e que serve para tratar o cancro e eu achei
muito curioso, que precisamente no sitio donde se tira as árvores do cancro
planta-se lá o pavilhão para tratar o cancro. Depois o professor Pereira Alves
era aqui o director clinico do hospital, ou director do hospital mesmo, já não
me lembro ele que me desculpe, mas não interessa, disse:- ao menos que não se
arranquem duas, (mas ele é que conhecia a história das Sóphoras) ele é que
disse:-Há duas que não se arrancam. E uma ficou incluída dentro do próprio
pavilhão para tratar o cancro, está até muito engraçada lá metida dentro e
outra à porta. Eu achei aquilo muito curioso e disse:- olha precisamente uma
árvore com história é que eu vou tentar trabalhar e dar alguma expressão. A
árvore naturalmente já tem a sua expressão porque…por motivos vários; porque o
sol anda de um lado para o outro e ela roda no sentido…o seu crescimento roda
no sentido de como sol a acompanha, depois o vento, depois não sei quê…portanto
a árvore tem a sua expressão estética que nós também podemos explorar e
portanto explorando um bocadinho essa expressão estética quis enaltecer uma das
árvores que para a cultura chinesa é muito importante e quem quiser vai à NET
ver o que é Sóphora Japónica que actualmente chama-se Styphnolobium japónico
por outros motivos, porque já não pertence àquela variedade, por motivos vários
porque…eu nem posso explicar tudo, porque há tanta coisa…não tem briófitas na
raiz. Há a Robínia Pseudoacácia que é
uma variedade próxima mas pronto… quem
quiser vai ver porque é tão importante e foi a minha primeira árvore. O meu
projecto inicial era esculpir as principais árvores da cidade. Era a Sophora,
era a Robínia Pseudoacácia, por outros motivos também e era o pseudo…o falso
Incenso, porque elas três têm uma expressão, uma história que vale a pena ser
contada e que vale a pena esculpir essas árvores, porque elas têm uma história
interessante. Aliás, todas as árvores têm uma história interessante, a cidade tem
histórias interessantes; porque é que elas foram plantadas aqui e não foram
plantadas ali e era esse o meu projecto; mas entretanto atravessaram-se outras
coisas no meu caminho, por exemplo, a única amendoeira que havia na minha terra
e que eu tantas vezes trepei para roubar as amêndoas ao sr. Pinto, uma vez
cheguei lá tinha havido fogo e ardeu. Então eu telefonei ao Neto que também era
médico desse senhor e pedi : oh pá, deixa-me lá pegar nessa amendoeira, dá-me essa
amendoeira e ele deu-me. E aquela árvore que eu tinha trepado tantas vezes em
criança e que ardeu também foi esculpida por mim.
--A amendoeira da infância de Vítor Brotas renasceu das cinzas numa
escultura feita por este filho da terra o brio de guerra cujo coração errante
adoptou a bondade como método e regra de vida, o médico que nunca diz não, dos
Capuchos, anda agora ocupado a fazer guitarras, porque
o alvo é uma investigação sobre os prodígios da madeira nos mistérios da acústica. É uma nova
paixão de um médico que gosta da madeira e da escultura. Mas da guitarra
falaremos noutra emissão da TSF numa noite destas.
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